quarta-feira, 29 de junho de 2011

Imagem!

Uma imagem e tantas palavras...

Certo dia, mostrei uma fotografia que eu fizera durante uma viagem ao Rio de Janeiro para a Dona Nega. Ela a admirou e em seguida fixou-me e, com um intenso olhar azul, disse-me :

 "as imagens são capazes de registrar o mundo e o que de belo nele tem, mas só as palavras são capazes de nos fazer sentir o que de belo tem o mundo ".
 Sinestesia de alma?

Dona Nega  


“Descobri, então, que as imagens de minhas memórias posso resgatá-las nas caixas das velhas fotos, nos álbuns de família, nas páginas dos meus cadernos de infância, porém a essência de minhas memórias somente posso resgatá-la em mim mesmo. Tenho pressa,  o tempo vai varrendo inexoravelmente tudo que é sentido. Vai matando em mim todas as sensações  da minha existência. É urgente tocá-las novamente. Quero lhes com cheiro, sabor, som  e, como um restaurador de passados, devolver-lhes  as cores  e o tato que só os abraços mais amigos são capazes de construir!”
MAReis

Reflexão

Em Tempo.

O tempo, como sabemos, é uma invenção do homem, e é nele e por ele que medimos nossos fracassos e sucessos. É cultural acreditar que o trabalho de um professor geralmente tem início, meio e fim. Tem prazo de validade que se esgota em duzentos, pouco mais ou menos, dias letivos, período inferior a um movimento de translação da Terra.
Não. Não são eles construtores de homens modelados, planificados e tabelados com selo de qualidade duvidosa. São eles inventores de ideias e acreditam ser nelas e por elas que se medem os seus trabalhos. A matéria prima com a qual trabalham não lhes permite transformá-la em produto de consumo. A matéria prima é vida e vida não se mede em tempo, mas em ações.
O trabalho de um professor não se finda a cada ano, ao contrário, toma fôlego, reinventa-se, transforma-se, amplia-se para ir além e se tornar mais vivo e atuante. É numa dinâmica paradoxal do duvidar para crer, do parar para avançar, do cortar para acrescentar que reside a essência das atividades dos educadores.
Fica aqui registrado nosso respeito a todos aqueles que contribuíram e contribuem para a construção de novos sonhos.
Muito obrigado Dona Rosália  por me ensinar a perceber o mundo em outras palavras. Minha primeira professora.
MAReis

Para ser educador
 Para ser educador
É preciso ser verbo
No cuidar para crescer,
No acolher para existir,
No acreditar para sonhar,
No motivar para seguir,
No incentivar para descobrir,
No despertar para aprender.
 
  Para ser educador
É preciso ser substantivo
Na fé para resistir,
Na luta que alimenta os sonhos,
No acerto,
No aparente erro,
No passo essencial,
Na vocação que desperta,
No grito que revela,
No sonho que se acredita.
   
Para ser educador
É preciso ser advérbio
No momento,
No tempo,
No além do hoje,
No agora que enlaça o amanhã,
No depois que rompe,
No pensar agora,
No amanhã de ontem,
No sempre, No futuro!
   
Para ser educador
É preciso ser adjetivo
Na alma sensível,
Nos olhos atentos,
No gesto confiante,
No sorriso acolhedor,
Na força que sustenta,
Na palavra que alimenta,
Nas mãos que amparam,
Na esperança do ir além.
   
Para ser educador
É preciso ser humano
No prazer de ensinar,
Na arte de aprender,
Na vontade de crescer,
No medo de não conseguir,
Na esperança de vencer,
Na dúvida que angustia,
Na velocidade do tempo,
No ser, na vida, nos sonhos.
 
Para ser educador
Educador!
É preciso não ser apenas palavra,
Tem que ser o milagre do tudo no todo,
É preciso ser verbo de ação e de estado,
É preciso ser substantivo concreto e abstrato,
É preciso ser advérbio de tempo e espaço,
É preciso ser Humano!
 
MAReis

Cafezais 4

Maria Aparecida


Minha irmã. Primogênita. Quis ser feliz! Foi?
Tanto em uma só, tão contrária em si mesma, genuinamente pessoa e fera. “Dente por dente, olho por olho”. Idealizou, frustrou-se. Teve sonhos, perdeu-se em pesadelos. Amou demais, sufocou-se. Colocou tanta gente no coração, que lhe faltou coração para viver.
Escreveu na borra do café de todas manhãs que era flor de todas floradas e que fora fecundada por pólen carregado na pata de um zangão. Seu grito, seus gestos, suas fúrias e seus medos continuam presos na atmosfera densa do seu nome, Maria. Inventou um mundo tão perfeito, acreditou que era real, mergulhou tão profundamente nele e nele escreveu uma história que não se coube.
Foi se perdendo na fumaça espessa do alcatrão que traga a vida, num adeus lento, redesenhando o tamanho do sorriso e, como um casulo que se arrebenta, fez-se borboleta azul, prolongou-se em seus filhos, e voou para alto, tão alto que se confundiu com o azul do céu. Ficou um quadro na parede. Maria correndo pelo cafezal, equilibrando a xícara de café para carregar de amargo a boca de meu pai. Vai essa imagem viajando comigo pelo tempo em que se vive e já não é apenas minha. Maria não se esgota em Maria, continua mariando outras histórias. Maria planou além dos cafezais, foi um planar tumultuoso e curto, mas valeu a pena, Maria Aparecida um dia me apareceu com o mar nas mãos. Como é lindo o mar que Maria me mostrou. Quis conhecê-lo. Conheci, Maria.    

MAReis

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Cafezais 3

Benedito (Dito)

 Uma vida escrita pelo riso à meia luz, pela piada que extrapola o momento. O drible que desconcerta o agora e depois do agora. História por detrás da história. Não trouxe nas mãos a habilidade dos colhedores de café. Maturou a vida às sombras das cocheiras e amaciou as raivas no leite morno que escorre das tetas das vacas recém-paridas. Acariciou o tempo com os pés descalços, os mesmos pés que chutaram para as redes fazedoras de emoções as alegrias que movem os sonhos. Desavisado de medos, correu além dos sois, roubou das dimensões infinitas dos cafezais a luz que ilumina o labirinto em que se encenam todas as mágoas. Há ainda um pedaço de riso perdido na soma de todos os dias de Dito.  Intraduzível como o piar alongado dos pássaros notívagos. Misterioso como os olhos dos quatis surpreendidos nos altos das mangueiras amareladas na explosão dos frutos maduros. Alucinante como festa de maritacas em final de tarde. Há ainda outro pedaço de riso escondido, uma piada que ainda não foi contada, um mito de serenidade abrigado no peito e que só se traduz no murmúrio solitário do sono interrompido, da frase inacabada, no eco do grito que não foi gritado, na ânsia desesperadora de ser e de se fazer parte de cada um de nós. Há um Dito quase feliz, outro Dito enigmático, de pura doação, de maestria e desprezo pelo que não se traduz em alegria. Em torno dele pousam as filosofias de fé, as crenças no outro e no que gravita além do universo que os olhos alcançam.   Dito não é trigo, é pão pronto, não é amanhã é o hoje. Não termina em si, prolonga-se muito além de tudo que lhe orbita, é uma explosão silenciosa de vontades contidas na simplicidade dos desejos.  Carrega na alma a idolatria das amizades construídas sob as festas de bola e de cevada, em torno dos discursos improváveis do nada, da festa defumada pelo tabaco, da tosse convulsa de esperanças escritas no horizonte distante onde planam as aves no descanso justo de todos os dias.  Vai, Dito, escrevendo uma vida dividida com outras vidas, repartindo a alegria colhida no calor dourado dos milharais. È pedaço de nós a ser traduzido nas esperanças de todos nós, não apenas o amamos, mergulhamos nele e com ele, num mundo de palavras, de gestos, de risos compartilhados. Permanece nesta história, porque é parte de todas as histórias que fazem esta história. Riremos juntos, com certeza, outros risos.


MAReis

terça-feira, 21 de junho de 2011

Série Cafezais 2

Seu Mário
Meu pai. Na pele a cor crônica dos plantadores de café.  Na boca e no bolso, café! Envelheceu na capina dos cafezais, no enleiramento dos cafezais, na colheita dos cafezais, na esparrama dos cafezais e na espera da nova florada deles, os cafezais! Café pela manhã, no almoço e no jantar. É dele que vem este meu desajuste no trato com a vida. É dele que vem esta minha ansiedade, esta pressa sem sentido, esta deselegância para com amigos e para com as mulheres. É dele, no entanto, que vem este gosto incontrolável pelo risco e pela crença de que vale um pé a mais. É dele que vem esta minha parceria com a natureza, esta veneração pelo pelos rios e pela mata virgem. É dele que herdei esta facilidade em ler o céu, antever a chuva e a seca. É dele que veio esta maneira estúpida de amar calado, intimidado e para sempre. É dele que me veio esta falta de medo e esta falta de traquejo com o belo, este ateísmo confuso e esta submissão servil. Assim aprendi a amar meu pai. Amar seus discursos monossilábicos, suas repreensões guturais, suas ordens assoviadas, seus gestos comedidos para mostrar o que e como fazer, sua perseverança. Não conhecia o verbo amar, mas era a tradução mais rudimentar e sincera de amor. Sou eu quem carrega no nome o seu nome. O café insiste em me engolir eu insisto em bebê-lo. Doze filhos, doze formas diferentes de dizer te amo! Meu pai volta nesta história, porque esta história é como café, mata, mas dá prazer!     


MAReis

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Todo dia

Bom dia amigo(a)!!!

“Viva na planta que rega, no pássaro que alimenta, no rosto que beija. Há de haver um bom dia todo dia, alguma coisa que está além do cumprimento formal, há de existir realmente um desejo, uma vontade de um bom dia. Um bom dia que arrebenta qualquer mau humor matinal. É desse bom dia que abasteço minha alma, cada vez mais rara e tão cara. Aos meus amigos, vou emprestando sorrisos, emprestando-os, que fique claro, porque os quero de volta.!!!”

Simples

De um olhar
Amigo
Um sorriso
Amigo
De um sorriso
Amigo
Outros olhares
Amigos
Outros sorrisos
Outros amigos.
Muitos risos!!!
MAReis

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Em Tempo

Dona Nega vem aí!!?


Um papo quase diário com aquela senhora que descobriu o fantástico sabor do jiló na Revolução de 32. Uma centenária quase mineira.


MAReis

Série Cafezais


Cafezais
Em torno das xícaras de café contam-se histórias, nos cafezais colhem-se histórias. Histórias sentidas, ingênuas que nascem da essência das floradas, dolorosas como as ferroadas das vespas, odiosas como as ardências febris das taturanas camufladas, alucinantes como zumbido de mangava prenha. São histórias de homens e mulheres secos de sonhos numa imitação autêntica das palhas quebradiças que forram o chão das colheitas outonais. Uma metamorfose de quem nasce flor para depois se tornar pó. Um nada imenso e tão pobre que nem a ausência se vive. Uma geração que nasceu para terra, para o labor da terra, para servir a terra. É daí que nasce este meu gosto incontrolável pelo café. Não sou viciado em café, ao contrário, é o café que é viciado de mim.

MAReis






Minha Ama de Leite
        
Nasci como todos os meninos das grandes fazendas do interior de São Paulo destinadas ao plantio do café. Modelado e carimbado para lida. Já nasci sentindo o cheiro da cafeína. Não aquele que se exala pelos bares e restaurantes da vida, mas aquele cheiro que nasce dos terreiros de secagem, das sacas empilhadas, das peneiras, dos vassorões que empurram areias sedimentadas. Já nasci ouvindo as vozes e gritos em idioma próprio dos peões e seus embornais. Nas tetas sempre cheias de minha ama de leite, experimentei pela primeira vez o café com leite.
Longe do burburinho urbano, quase uma dezena de quilômetros de distância de um médico qualquer, numa casa caiada, cuja brancura se destacava na floresta verde escura dos cafezais, vim ao mundo amparado pelas mãos de Dona Maria, parteira negra de voz melodiosa, digna das cantoras americanas de “Blue”. Dona Maria possuía uma beleza rústica, trazia sempre pendurado na boca um cachimbo de barro que, quando aceso, lançava ao ar um forte e adocicado cheiro de fumo de corda. Tinha uma paixão secreta por esta senhora. Dela exalava uma paz, uma calma que só os anos de vida e de luta emprestam. Ganhei horas a fio ouvindo, entre uma cachimbada e outra ou enquanto desfiava nas palmas das mãos o fumo para abastecer o instrumento fumegante, suas histórias místicas, muito delas folclóricas, outras ligadas à riqueza do sincretismo religioso, que de tão belamente contadas por ela, nas minhas crenças e no meu espírito se fizeram reais a vida inteira. Invejo estas mulheres, invejo seus genes impregnados de África. Invejo esta cultura clandestina que se revela nas panelas de barro e nos fogões à lenha, que explodem em sons, em ritmos, em danças, em rezas, em poesia, em vertigem!  Dona Maria não foi apenas a mulher que me trouxe ao mundo, foi minha primeira imagem de mundo! Trazia no rosto a serenidade das rainhas angolanas, na orelha um galhinho de arruda e uma argola dourada, na cabeça um lenço com as cores de todas áfricas, me sustentou nas mãos calejadas das colheitas de café, contagiou-me de África.  É essa África que me prendeu aos cafezais, é essa mesma África que me levou além desses cafezais. Obrigado Dona Maria.

MAReis


quinta-feira, 16 de junho de 2011

Crônica 2

Eu me lembro, fui à Lua em 1969.

Fui à Lua em 1969, logo após Neil Armstrong cravar a bandeira americana em solo lunar. Eu e meus amigos, entre eles meu irmão, afinal viagens como estas, que exigem trabalho, confiança recíproca e sigilo absoluto, ficam mais divertidas e prazerosas quando as fazemos com pessoas que gostamos e compartilhamos aventuras. É um espaço onde o nepotismo deve ser exercido a qualquer preço, sem medo e sem pudor. Lá fincamos o pavilhão nacional. Não fomos os primeiros, mas fomos brasileiros a andar por aquelas bandas. Ficamos sabendo, algo nunca confirmado, que os meninos do outro lado da cidade desenvolviam um projeto semelhante. Acho que não seja verdade. O certo é que não os encontramos nem no caminho e nem na Lua.
A nossa viagem não teve cobertura midiática, mas o que nos importa a mídia? O fato é que estivemos lá. Dividimos com os americanos a conquista do espaço, talvez bem antes dos soviéticos, diga-se de passagem. E mais, a nossa conquista foi muito mais emocionante, porque quando pousamos na terra de São Jorge, diferente dos americanos, encontramos seres horripilantes, lagartos gigantes e toda uma gama de seres extraterrestres. Foi uma batalha sideral para vencê-los. Ainda bem que nossos escudos e armas eram extremamente poderosos, apesar de serem construídos com materiais simples e abundantes como cana de milho, caixas de papelão que conseguíamos pelos mercados da cidade, pedaços de borrachas, pneus abandonados e jornais velhos, muito velhos é bom que se diga, àquele tempo não era tão fácil encontrá-los. Ainda bem que meu avô foi um leitor assíduo do antigo Diário de São Paulo. Voltemos aos fatos. Depois de muita luta, e do quase esgotamento de nosso estoque de imaginações, conseguimos finalmente plantar na Lua um pedacinho do Brasil. Uma conquista histórica, injustamente não divulgada. Estratégia nacional, penso.
Apenas eu, Dore, meu irmão, Zé e Júlio, meus amigos de escola e, para ser justo minha irmã, a Zil, participaram e testemunharam a grandiosidade daquele projeto ultrasecreto, tão importante para o Brasil e, quiçá, para o mundo.  A título de esclarecimento, a Zil não viajou à Lua, pois tinha medo de altura, mas foi extremamente importante para os nossos planos, deu-nos todo o apoio em Terra.   A nossa nave tinha algo policarpiano, era muito maior, muito mais colorida, muito mais veloz de que a Apolo 11. Custou-nos horas de trabalho e imaginação. Afinal não tínhamos a estrutura da NASA e os materiais e ferramentas eram infinitamente mais rudimentares e escassos, o que atesta a nossa inteligência superior. As ferramentas, para se ter uma idéia, resumiam-se a um martelo que foi adquirido ao preço de uma boa surra. Júlio o conseguira subtraindo da oficina do pai, que certamente desconhecia o propósito patriótico daquele trabalho. Um velho serrote, presente do meu pai, que resolveu ceder após muito choro do meu irmão, um choro irritante, planejado é claro, mas sempre eficiente. Dore tinha uma habilidade singular para conquistar meu velho, o choro. Havia ainda uma tesoura valiosíssima que chegou as nossas mãos, não sei como, sei apenas que dias mais tarde gerou um certo tumulto entre minha mãe e mãe do Zé, não sei bem que fim teve esta história, mas isto não vem ao caso agora. Fora de grande valia para os cortes de linhas e barbantes que chegavam aos montes doadas por alguma alma bondosa ou adquiridas nas guerras de pipas.  Dezenas de latas vazias de óleo, latas de massa de tomate, garrafas abandonadas, grampos de cabelo, pedaços de mangueiras de jardim e uma série imensa de outros apetrechos que recolhíamos pelas ruas e pelos quintais, todos com funções previamente planejadas, completavam a nossa estrutura tecnológica.   
O lugar secreto onde construímos a nossa nave espacial, secretíssimo, diria Júlio movido por seu gosto exagerado pelos superlativos, foi o quintal da casa dele.  Imenso, tinha de tudo, árvores de todos os tamanhos, pomar, diversas aves e animais, inclusive um velho cavalo pangaré, muito bonito. Muitas vezes peguei-me a imaginar cavalgando nele nas minhas fantasias de mocinho e bandido. A Aquiles 5, assim fora batizada a espaçonave, após um verdadeiro concílio de Trento, pois o nome veio de uma extensa consideração do Zé,  sempre muito afeito a estudar as origens dos nomes. Ele exalava um certo eruditismo, certamente o recebera dos pais professores. Convenceu-nos que Apolo vinha da mitologia grega, portanto devíamos, por uma questão de coerência espacial, buscar o nome de nossa máquina voadora na mesma fonte. Antes que Zé enveredasse por um discurso sem fim sobre as entidades mitológicas, resolvemos por unanimidade aprovar o nome sugerido, não tínhamos, naquela época, tempo a perder com considerações de tão grande ordem. Nome esclarecido, a nave novamente.
Verdade seja dita. Ela já estava praticamente pronta, a engenharia da natureza se encarregara de fazê-la. Tratava-se de uma imensa mangueira cuja copa espalhava-se em torno do caule, formando uma sombra circular de dez metros de diâmetro aproximadamente. Ela estava lá e lá estávamos nós. Havia uma vontade desesperadora de voar além dos muros de nossas casas. O mundo falava da conquista da Lua e nós pensávamos em ir à Lua. Era uma vontade repartida, uma idéia que não se cabia em nós, uma imaginação coletiva. Mãos à obra, “um por todos, todos por um”. Faltavam apenas detalhes. Foram horas de trabalho árduo, não lembro quantas, mas foram muitas. Rapidamente, começaram a surgir os painéis de vidro, poltronas de tábuas velhas, luzes de garrafas, radiotransmissores de latas de massa de tomate ligadas por linhas de costura, bandeiras de lençóis rasgados, manoplas retiradas de uma bicicleta fora de uso, uma tampa de panela velha virou volante, madeiras abandonadas e prontas para aquecer o forno á lenha transformaram-se em escadas de acesso aos diversos pavimentos, e... Ufa!!!
Tinha uma admiração particular pelo painel de vidro, não apenas porque trabalhei com muito empenho na sua construção, era o efeito de luzes que ele proporcionava o que mais me atraia. Alguns raios de sol escapavam pela copa da mangueira e se chocavam com painel, replicando -os em dezenas de pontinhos luminosos sobre as folhas, criando uma imagem perfeita para os nossos ideais.
O nosso trabalho não se esgotava em Aquiles, prolongava-se, a última imagem antes de adormecer era ela e o que faltava nela. Nas aulas, não se falava de Aquiles, mas havia uma cumplicidade nos olhares trocados, ansiedade, taquicardia, quase angústia. Enfim, quando o sinal do término das aulas tocava, acontecia uma explosão de alegria em forma de planos. Não percamos tempo. Estejamos lá na hora marcada, o tempo urge. Partiremos amanhã rumo ao espaço que nos levará a casa do dragão de São Jorge.
Refeições mal digeridas e contestadas pelo afã materno. 
- Pelo amor de Deus, mãe, já não temos fome, comemos imaginação!!
Lá estava a Aquiles 5. Ficara pronta, exatamente dois dias depois dos americanos pisarem na Lua. Estávamos em uma missão de vida e morte, a serviço do futuro espacial brasileiro.  Deixaram-nos partir, deixaram-nos imaginar. Criamos a nave que nos levou para viagens inenarráveis pelo universo de nossas fantasias. Inventamos outros mundos, inventamos outros amigos e conhecemos a Terra lá de cima. O combustível!!!  I MA GI NA ÇÃO!!!
Não fomos os primeiros a chegar à terra do dragão, mas nós chegamos à Lua e cumprimentamos São Jorge. A viagem até lá, no infinito de nossa infância, foi uma aventura indescritível. A Terra é azul, tão azul quanto o direito de ser criança.   
E você, já foi à Lua?  

MAReis   

"Repentinamente 2"

Lucidez

...Onde começa está história? Não sei. Talvez ela não tenha começo e o fim ficará para outros contarem, pois ela nasce e morre a cada instante dentro e fora de mim. Renasce na infinidade das imagens, dos sons e dos espaços percorridos ao longo da minha estada neste universo de verdades e mentiras que sem querer acabei construindo. Ela recomeça em cada amigo e em cada inimigo que minhas palavras conquistaram em cada dia de minha experiência como um homem a mais entre bilhões de outros cujas histórias, muitas vezes, confundem-se e são compartilhadas. Filosofia?  Não. Angústia! Angústia de não saber por onde começar está história que não é só minha, mas de muitos outros.
Então que sejamos breve nesta angústia. Comecemos por um sorriso. A última imagem que restou dela em mim. Luana, meu amor! Não sei se vive. Se viver, certamente esta história não termina aqui. Há o incontrolável medo de ter sido apenas um ponto no infinito da vida de Luana. Não quero, e tenho o direito de ser mais que um ponto, mais que uma parte. Em matéria de amor sou egoísta, desejo o todo e o tudo. Em matéria de amor sou uma verdade absoluta. Não me dispo e nem me convenço do contrário. Egoísmo? Muito mais! O amor não nasceu em mim para ser repartido. São meus os olhares da pessoa amada! São meus todos os gestos, todas as palavras, todos os risos e todos os riscos! Se quiseres flores.  Eu as escolherei para ti. Se quiseres bebida que lhe faça mais viva e mais alegre. Eu a servirei na mais bela taça que eu mesmo lapidarei e que jamais nenhum outro Baco além de mim há de tocá-la. Em matéria de amor sou muito não e pouco sim. Não cultivo e nem cativo a pessoa amada, cultuo-a em mim e para mim! Eis porque vivo a colecionar sorrisos. Sorrisos tão enigmáticos! Cheios de adeus.... 
Tudo poderia ter sido diferente.  E, hoje, eu seria diferente. Teria mais que um sorriso para começar esta história, teria Luana inteira, bem aqui, ao meu lado, soprando cada palavra, cada vírgula.
Perdi Luana em 1997. Precisamente no carnaval de 1997, ás 22h16 minutos no salão de bailes do Marques Tênis Clube. 
-Vou ao banheiro, disse-me ela ansiosa.
O salão estava cheio. Nunca suportei lugares cheios. O frenesi das luzes provoca-me insegurança.  
-Te acompanho até a porta. Ofereci-me, quase exigi.
-Por favor, não! Peça um suco, estou morrendo de sede.
Acreditei,  aquilo fora quase uma súplica. Olhei o relógio para ter certeza do tempo que ela gastaria para ir ao banheiro. Cinco minutos é o suficiente! Vai lá oito minutos! Nem um segundo a mais! Fui ao balcão, desesperado com o tumulto. Geralmente sou educado, respeito filas, mas tratava-se de um caso de urgência. Tratava-se de Luana. Furei a fila. Houve um pequeno tumulto logo controlado pela segurança do clube. Pedi um suco de laranja. Uma eternidade para ficar pronto. Quase 5 minutos. Protestei, absurdo, falta de preparo dos funcionários, incompetência! Deixei claro que em ocasião propícia voltaria para registrar meu descontentamento. Voltei apressado, quase correndo, atropelando inconvenientes pelo caminho. E como era longo o caminho!  Ufa! Finalmente cheguei. Cadê Luana?  Cadê Luana?!!! Esperei outros infinitos cinco minutos! Quis invadir o toalete feminino! Fui impedido, humilhado por gorilas travestidos de seguranças! Despreparados, insensíveis, incapazes de perceber o meu desespero! Odeio todos eles. Suei, atirei longe o copo de suco, xinguei, vomitei toda ira que se acumulou em mim. Som, luzes, vozes, risos, aplausos, centenas de olhos dirigidos para um quadro dantesco. Para mim!? Não, para meu desespero. Um leão faminto urrando a dor da perda. Acoitado pela pelo prazer mórbido do desespero, prazer inconfessável da turba. O homem só é covarde, é solidário, é humano, mas ali não estivera o homem, ali estivera a multidão, momento de reverenciar o sangue, o medo e a angústia do só e aplaudir a dor alheia. Misturam-se as águas que minam do corpo. Suor, lágrimas, baba e urina. Perdi!!!! Já não era eu. Prostei-me, desci os olhos para o piso lustroso do salão, deixei-me levar pelo estreito aberto no meio de uma plantação de pés, pernas, corpos e de sons indistintos, som de manada enfurecida.  Um soco no estomago, um chute, a rua, um corpo contra o poste e um amargo gosto de sangue.  Solidão .... Luana?  Luana? O pilar que sustenta a marquise também sustenta o homem e sua dor, o pilar que sustenta a marquise também sustenta a placa luminosa com a moça loira e garrafa de cerveja. A cerveja, cerveja a cerveja! Luana? Não, por favor, peça-me um suco de laranja. Sete minutos fora muito! Maldito barman! Estou morrendo de sede! Roubei da mão da moça loira a garrafa de cerveja, uma, duas, três....... Tumulto. Freadas. Corre a menina com a mochila, o homem de terno, a bengala que arrasta a idosa, o jornaleiro, o cão esfacela o saco de lixo, levanta a perna e rega o poste estéril. Fecha o sinal, abre o sinal. O cão continua cheirar. A bengala arrasta a idosa para o meio da rua. Um grito. Uma freada busca. O carro arrasta a bengala e a idosa. Tem sangue no meio da rua. Gente, mais gente, multidão! Sirene. Resgate. Luana? Estou morrendo de sede! No meio da calçada, no meio deserto que se fez em mim. A loira e a cerveja, o bar e a loira, a cerveja, eu! Não quero voltar. A idosa coberta de preto, protegida do sol. E a bengala no canto da sarjeta. A bengala arrastou a velha assim como eu carrego esta dor. Eu inventei Luana para mim! Luana inventou a dor. Não para ela, mas para mim. Onde está Luana! Meus Deus!!! A cidade inteira. Luana tem a cidade inteira e cidade tem Luana inteira! Onde? Luana? Já se passaram mais de oito minutos. Não consigo respirar .... dói ..... uma convulsão de soluços ...... Bêbados, grita a mulher e seu cão de estimação. Queria lhe dizer que ..... que importa? Ela está preocupada com seu cão tipo exportação.  O grupo de adolescentes passa, atira uma bola de goma de mascar no bêbado.  Quis xingar. Para quê?  Luana? Perdi! Perdi-me!


MAReis

"Repentinamente" 1

Uma lembrança me Acordou de Madrugada


Recusei de imediato a convocação descabida e fora de hora. Desabafei a Deus e creditei tal ousadia ao Diabo. Ainda que eu tenha uma relação de tranqüilidade com minhas lembranças e as considero sempre bem vindas, sejamos honestos, uma lembrança que chega de madrugada, no auge do sono merecido, após mais de doze horas de trabalhos ininterruptos, não pode ser uma boa lembrança. Não gostei desta visita inesperada. Odiei de início. Tampei os ouvidos numa tentativa idiota de não ouvi-la, como se elas, as lembranças, nascessem dos ruídos e das imagens exteriores. Ao contrário, elas nascem no interior de nós e, alienigenamente vai testando-nos a paciência até virarem náusea e, depois, num jato de vomito incontrolável inunda o papel de palavras. Usei as pontas do lençol para tampar os ouvidos, poderia tê-lo usado inteiro, mesmo assim, lá estava ela numa determinação odiosa de me fazer escravo, em sua busca obsessiva de se fazer real.   
- Macarrão!!!! Ele é um macarrão cozido!!!
O mundo riu de mim. Riram meus irmãos, meus cunhados, meus tios e tias, primos e primas, a família inteira. Os mais exaltados fizeram questão de repetir em coro, macarrão!! Apenas eu não achei um pingo de graça. Entreguei o serrote ao meu pai, acho que tinha ciscos nos olhos, homem não chora, não na frente de outros homens e muito menos depois de ser chamado de macarrão! Afinal já tinha oito anos de idade.  A ferramenta foi das minhas mãos até as mãos de meu pai manchado de mágoa e de uma quase revolta, numa lentidão assustadora.
-Vamos logo, macarrão!!!
Virei as costas para mundo e fui conversar com meus botões na curva de uma parede da casa grande, onde os risos e o vozario daquela festa não me alcançasse. Primeiro quis entender o porquê daquele vocativo tão despropositado. Macarrão?  Macarrão e por cima adjetivado! Macarrão cozido!! Não bastava apenas macarrão. Tinha que ser cozido. Puta que o pariu!!! 
Os santos sempre fizeram parte de minha família, herança da devoção católica de minha avó paterna. Os meses de junho e julho eram para ela uma época quase sagrada. Colhiam-se milho verde para a pamonha e para o curau. Batatas doces para assar nas brasas das fogueiras de Santo Antonio, São Pedro, São João ... acho que tinham outros santos por lá, não me lembro. Laranja brava, mamão verde, cidra e abóbora para fazer doces em calda. Tinha também garapa, vinho quente e quentão. Essa era uma época aterrorizante para animália da fazenda e, particularmente, para as mulheres e afins de corações mais sensíveis. As mesas e os giraus do barracão de trabalho tingiam-se de vermelho. Matavam-se frangos e galinhas velhas às dezenas, uma meia dúzia de leitões e, pior, um bom garrote de corte. No meio daquele sacrifício animalesco a serviço da comilança familiar, surgiam Histórias e histórias regadas a vinho quente, ordens e risos.
O macarrão deixou de ser apenas uma massa tão apreciada nos almoços de domingos e passou a ser História, parte do cardápio das festas de família. História que vinha para as rodas de conversa pela boca de um engraçadinho de plantão, geralmente um agregado na ânsia de agradar ao meu pai, e pai das esposas ou namoradas deles, parasitas! Cambada de filhos da puta que só apareciam nas épocas de festas. Acho que meu pai começava a enjoar daquela toada, a medir pelo tamanho riso por debaixo de seu bigode espesso e pela raiva que deixei de esconder.  
Mataram o garrote. Durante a desossa, faltou o maldito serrote para cortar um pedaço de costela mais resistente. Meu pai virou-se para mim.
- Vai até a dispensa e pegue o serrote. Corre!
Senti-me orgulhoso, fui notado, fui o escolhido.
A dispensa ficava pelo menos um cem metros dali. Era um quarto de paredes altas onde meu pai caprichosamente organizava suas ferramentas em prateleiras que, construídas em madeiras maciças, iam do chão ao teto. Cheguei lá rapidinho. Cacete! Cadê as chaves. Voltei correndo.
- Pai, cadê as chaves?
- Sai correndo que nem um bobo. É isso aí, a cabeça não pensa, o corpo paga. Vai rápido, um pé lá outro aqui! Jogou para mim as chaves, deixando transparecer  certa impaciência.
Reflita! Porra!! Quando for colocar duas ou mais fechaduras em uma porta, coloque-as todas a uma mesma altura, considerando sempre um homem de aproximadamente oito anos de idade ou então construa dispensas para anões! Caralho!  Meu pai não pensou nisso! Abri a primeira fechadura com facilidade. A segunda, depois de fazer um boa pilha de tijolos que me custou um unha roxa! Onde está você, serrote? Passei os olhos pelas prateleiras. Lá em cima, bem lá em cima, na última prateleira! Maldisse a organização de todos os adultos!! Num canto uma escada de madeira. Leve, levíssima como um tanque de guerra! O tempo passa mais depressa quando estamos atrasados! Meu Deus, como aquela escada era pesada!! Arrastei devagarinho, bem mais devagar do que eu imaginara e a pressa do meu pai que naquele momento já era a minha.  Peguei o serrote. Desci a escada com a velocidade de um camundongo em fuga. Fechei a porta com a velocidade de um gato em busca da presa. Sai correndo como um cão em festa junina, eu e o serrote. Meu irmão já vinha ao meu encontro.
-Daqui essa merda. Você acha que temos o seu tempo. Seu merda, eu quero descansar. E você ai que nem abelha fazendo cera! Disse-me ele com raiva.
-Não! O pai me mandou buscar. Eu levo. Eu não tenho namorada. Azar seu se você está com pressa.
-Vai se danar!
Corri, corri, cheguei lá, com a felicidade da missão cumprida, um sorriso vestido. Quando virei a curva da casa, havia algo errado no olhar do meu pai!
- Viva chegou a margarida!! A família gritou unida.
Meu pai.
- Isso aí é um macarrão!! É mais mole que um macarrão cozido!!
Porra! Eu devia ter dado o serrote para meu irmão entregá-lo ao meu pai!!
Meu pai sempre dizia que domingo sem macarrão e sem frango não é domingo. Eu também acho.

  MAReis