sexta-feira, 29 de julho de 2011

São Paulo



São Paulo

Nos ombros,
Sem bússola,
Nas ruas,
Agora.


Outras vozes,
Outras cores,
Outros risos,
Outras miragens.



Das vozes apressadas,
Do cheiro carbonizado,
Dos olhares perdidos,
Dos olhares encontrados.

Das buzinas alucinadas
Dos ruídos da terra,
Dos ruídos do ar,
Das sirenes,

De final tarde,
De começo de manhã,
Das madrugadas,
De outra manhã.

Pinceis, cinzeis e letras,
Telas, mármores e palcos.
Garfo, faca e copo,
Virado, pastel e chope.

Na folha vazia
Matéria prima,
Cidade vestida,
São Paulo.

Viver não cabe em um cartão postal!

MAReis

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Beija a flor!

Rasgaram o ventre da Terra.  A fumaça negra apagou o arco-íris. O sol não veio. O vento levantou do rio uma enorme bolha de sabão. Um grito de vida! A nuvem negra, onde a ave do agouro fez seu ninho, prendeu-se no cume da cordilheira despida de neve. Na lama, à margem da vida, um esqueleto de peixe continua a esperar, no salto paralisado, pelo inseto que não veio visitar a flor que não nasceu. Sabedoria desfeita, uma história, um homem, um pássaro e a crença num mundo que foi ontém. Que o tempo acorde em tempo de beijar a flor e chamar o sol no horizonte!!!
MAReis

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Reflexão 3


Dona Nega
“Nossas memórias são os principais referenciais para entendermos o que somos. Elas não são um ponto final em nós mesmos, ao contrário, é a certeza de que não somos um lugar vazio no universo. Boas ou ruins, elas nos definem e nos posicionam no mundo dos iguais. Elas nos fazem singulares.”

Deixo claro então que os cafezais estão longe de ser minha história. É apenas um posicionamento em mim mesmo. É beijo carinhoso no coração de todos aqueles que me fizeram perceber o mundo em outras palavras. A minha história é muito mais longa, ainda falta muito para ser contado. Outras personagens amadas fazem parte dela. Meus filhos e a mãe dos meus filhos, meus amigos, minhas crenças,  minhas dúvidas e minhas certezas!!!
MAReis

               Utopias
Por que mataram as utopias?
O mundo está ficando sem graça.
Vamos inventar outras.
Combinado?
Uma ideia,
Uma ideologia,
Um mito,
Uma verdade absoluta,
Um mundo perfeito,
Em nós mesmos.
Uma alegria eterna,
Um mundo fraterno,
Simples assim!
Vamos?

Série Cafezais - última


Eu

Tudo o que me precede e tudo que me sucede. Sou a soma de todas as alegrias, de todas as revoltas, de todas  as tristezas com as quais convivi. Sou a soma de todos os sonhos que ouvi e vi por meio das bocas adormecidas de café. 
 Não bebi apenas o café açucarado que escorre dos peitos enegrecidos dos coadores, bebi também o chá das folhas, embriaguei-me da luz do querosene das lamparinas que, na fraqueza das chamas, jogaram um pouco de claridade nos olhos atentos de quem ousou  sonhar, numa cobiça que vai muito além do ali, que vai muito além dos queijos amontoados nos galpões de cura, muito além do que já se conhece do amanhã e do depois do amanhã. Foi na tintura do carvão da torra que tracei na palma da mão, minusculamente, o meu sentido de liberdade, para que o suor minado dos poros abertos pelo sol de cada dia não o apagasse. Sou acima de tudo o que colhi das convivências agasalhadas pelo tempo e pelo espaço dividido.  Fui somando o que de melhor colhi de cada um com quem dividi e somei, fui multiplicando a minha ira, a minha certeza de que o mundo não era apenas um imenso redondo enfeitado de café. E dos jornais amarelados, invólucros das cachaças baratas, amantes das desnudadas bocas dos capinadores e colhedores de café, que encontrei perdido o cinzel com o qual lapidei a madeira bruta e dela arranquei a canoa que me sustentou nas águas tormentosas de minha adolescência.  Agucei todos os sentidos contra a arrogância dos cafezais. Viajei por territórios tão diferentes, numa convivência amedrontada pela educação regida pela cartilha do café. Parti marcando meu caminho como cães domesticados. Não nasci para cultivar calos e colher raivas. As minhas dores, deixei-as lá, presas no fundo de minha infância como raízes de uma jaqueira centenária.  Fui me distanciando daquele eu anulado pela cafeína e, na inexistência da privacidade, reconstruí-me em outro eu particular, desnudado das mágoas colhidas nos troncos de cada pé café, de cada grão colhido. 















Desenvolvi um eu paralelo com quem reparti e reparto minhas angústias e minhas miragens futuras. Um eu que só se revela em mim mesmo. E pelos cafezais das minhas memórias ainda é possível ouvir os sons de um diálogo travado comigo mesmo. Diálogos ásperos, às vezes acovardados, às vezes lúcidos, às vezes delirantes, símbolo da loucura que me sustenta e me move para ir além. Este eu particular continua em mim e é com ele que reparto idéias e ideais, é com ele que reparto não só minhas vontades, mas os meus sonhos carentes de originalidade, desajeitados, despenados e curtos como os vôos de frangos destinados aos almoços dominicais. Estou encharcado de vida, colho pedaços de outras vidas fundidas em trânsito habituado. E aquele som das solidões plantadas na imensidão dos cafezais, faz-me companhia na rotina angustiante dos iguais de todas as manhãs, monotonia acadêmica de um quadro de natureza viva. Não sou estático, tenho um dinamismo oculto, perene, sedimentado na natureza de tudo que vi, ouvi, senti e provei. Continuo apenas sendo, tenho a desconfiança dos filhos dos cafezais e certo em mim, só o que ainda me falta viver. Pouco sei de mim, quem sabe? Os outros, talvez! Há um querer no fundo da alma que me assusta. Bomba programada para explodir? Relógio do tempo que ainda não vivi? A minha história tem a dimensão dos cafezais a serem plantados, até aqui é pouco e sei que isto não me basta!   

MAReis

Série Cafezais 14

André

A pressa, a impaciência e a vontade embalada pela celeridade de todos os cantos da natureza. Vertigem colhida nos ventos alucinados que cortam o verde dos cafezais. Nos gestos e nos risos há a imposição dolorida de sonhos podados pelo tempo e pela vida. Aprendeu a libertar o grito, a esticar a ira e cultivar no ventre mágoas brotadas nas fontes dos discursos mal digeridos. Do canto do sabiá, da impetuosidade dos cavalos por domar, da astúcia da coruja na proteção da espécie, da impaciência das crias famintas, da impulsividade dos estouros de boiadas em estradas de chão batido arrancou a matéria prima com a qual alimentou alma e ladrilhou as relações com o antes e o depois. Nas páginas de tantas histórias e de todas as histórias, vai construindo um novo mosaico, protetor de novas crenças, de novos projetos e de novas esperanças. E neste caminho que encanta, onde o velho e o novo se tocam, renasce a certeza de se sentir vivo ainda que a pele exale o aroma impregnado de café. Imaginou o som das platéias decoradoras dos grandes espetáculos no delírio contagiante do gol. Dominou a bola, ou melhor, a bola o dominou. Na velocidade de sonhos impregnados de lembranças vagas, vai domesticando dores e raivas na fumaça difusa do alcatrão. Espécie de felino camuflado para o próximo bote. Rebelião em si mesmo, gestos incontidos, impulsivos, discursivos, conjunto de ecos tradutores de vozes perdidas nas distâncias das palavras não ditas ou mal ditas. Construtor de novos horizontes, de novos espaços onde dançam, ao som de todos os sons, as imagens reveladoras de histórias tecidas em fios de seda desvelados dos casulos abandonados pelas lagartas refeitas em borboletas. Vôo guiado pelo radar dos pássaros notívagos, em busca da última semente, mãe de uma espécie em extinção.  Vai! André, carregando um punhado de contos, de poesias inacabadas e de heróis desmentidos. Vai! André, amarrando sua história a outras histórias, empurrando na vida um feixe de fatos e mitos e entre tantas histórias, talvez esteja a minha, as de todos nós, com certeza.  É a folha mais verde que no outono de todas as árvores vai desprendendo-se para alçar o vôo de liberdade impulsionada pela brisa vida, vivida e por viver.

MAReis

Série Cafezais 13

Zilda
Não nasceu para ser história, mas para construir histórias. É liberdade que povoa as margens floridas dos riachos perenes, casa de todas as espécies de sonhos. Quadro de natureza viva onde reverbera todas as cores, todas as luzes, tudo que há muito além de cada um de nós.  Os olhos, lanternas que rompem a escuridão do agora e iluminam as paisagens que adornam as vidas além dos cafezais. Zilda é eco de um grito em gestação, é força que rompe fronteira, alarga esperanças, constrói outros risos. É como a foice que ceifa os cipós que estrangulam as árvores, mães de todos os frutos. Zilda, como as abelhas em vôo incerto, roubou a essência das floradas dos cafezais, dos laranjais, dos mangueirais e de todas as flores que enfeitam o mundo e sustentam o amanhã, e sob luminosidade intensa do sol, polinizou outros universos estéreis de sonhos. Recolheu da natureza a vertigem do verde, os cantos de todos os pássaros, a destreza de todos os animais, as teias de todos os insetos, a delicadeza de todos os peixes, a sutileza de tudo que faz o pulsar da terra, e dessa coleta construiu a magia de sua alma criadora. Como as borboletas em migração, Zilda vai alçando outros horizontes. Como os esquilos caçadores de nozes, vai escalando as alturas das árvores gigantes arquitetando o próximo salto. Zilda tem a grandeza de projetar-se além de si mesma, a reflexão do protesto de todos nós, a liberdade que brota no esforço continuo na busca do que é novo e renovador. Não sofre da paralisia do instante, ao contrário, antecipa o gesto que inova e que convida para os saltos desafiadores. Enfeita o tempo com os sons que habitam o futuro. Zilda é parte campo e parte urbis, carrega com ela à delicadeza das orquídeas brancas, a beleza das primaveras amarelas, a força dos pendões dos milharais, a alegria das roseiras das praças interioranas, o badalar da matriz, o frenesi das ruas movimentadas, um misto de terra e de pedra. Tem em Zilda um arco-íris desenhado pelas cachoeiras em dias de sol. E na potência da natureza que lhe move a alma, há também, como em todos que amam a vida com a intensidade das tempestades de verão, a dor encolhida, o medo não revelado, a necessidade do abraço perdido, da palavra não dita, do carinho esquecido no tempo e no espaço. É mãe, é filha é mulher. Há uma vontade incontida de reconhecer e ser reconhecida pelo esforço que ladrilha o seu tempo de ser. Amamo-la porque é assim livre, acolhedora, generosa, afetiva, explosiva, impulsiva. Feliz a sua maneira. Tradutora de um amar singular em que revela a sua parte e a parte do outro. Zilda, como tudo que é fraterno, tudo que é festa, tudo que ilumina, ajuda a construir esta história, que não é minha, mas de todos nós. Volta para dar alma às palavras que estão por nascer e fazer parte deste infindável repertório inspirado pelo aroma enfeitiçado de café, colhido na maturidade dos grãos e na revolta dos momentos perdidos na vastidão imperiosa do verde Sumatra. 
MAReis

Série Cafezais 12

Fátima (Filó)

Flor da terra. Doação de vida e de fé.  Com as cores de todas as esperanças, inspirada pela serenidade dos Ipês amarelos, artista da terra onde transita outras vidas e vai enchendo o hoje com os projetos de amanhã. Na alma, o sopro de todas as manhãs, na pele, a leveza do algodão acoitado pela brisa, no olhar, a natureza das lagoas ao entardecer, espelho onde o infinito azul do céu se revela. Sol em sua grandeza narcisista, cuja vida duplica-se numa explosão de ouro e de luz. Amor na infinidade do ser filha, mãe e irmã, que vai muito além de si mesma.  Uma liberdade que se traduz no vôo das aves em corrente de ar quente. Filó não veio só, veio com a misteriosa bondade dos felinos domesticados. Trouxe uma paz moldada no silêncio dos cafezais sob a luminosidade tênue dos finais de domingo. Trouxe o coração fora do peito. Um coração que pulsa nas mãos, nos gestos, nas palavras, no olhar e no sorriso tímido. Filó tem, como as campainhas campestres, a simplicidade harmoniosa de tudo que enfeita a vida e ornamenta os sonhos. Vibra ao seu redor a energia que nos faz mais humanos, menos doidos, mais essência e menos veneno. Não se sabe se Filó é borboleta que enfeita flor ou flor que enfeita borboleta.  E sob as mágoas ressecadas, constrói uma história de dores camufladas e, como as folhas dos outonos que desprendem dos galhos atendendo ao destino de sua natureza, aparta-se das asas que lhe sustentam os sonhos, para repartir consigo a dor que nasceu da ira do outro. Tem devoção no nome, vida de devoção, tempo de devoção que transcende o que se vê e o que se crê que pode ser. Que esperanças sustentam esta natureza tão singularmente serena? Que sentimentos ocultos sustentam lhe a crença no outro? Que café é este que lhe emudeceu as raivas, destruiu-lhe a dor que exige explosão de voz e de gestos? Que medos estão sublimados no ventre e na garganta?  Uma história feita de histórias tão diversas, tão genuínas, tão impregnadas de hábitos originados sob a solidão do campo. Histórias tingidas pela aquarela dos horizontes dos cafezais e pelo verde das folhas das laranjeiras trituradas no frenesi dos dedos aflitos. Filó é a linha tênue que amarra todas as nossas histórias. Por isso permanece fazendo a sua e ampliando a nossa, numa confusão de melodias extraídas dos ecos que nascem dos casarões que povoam as fazendas e seus cafezais.
MAReis

terça-feira, 12 de julho de 2011

Série Cafezais 11

 Marta (Nega)

Um turbilhão de mistérios a serem desvendados. O riso largo. Na pele, as cores de todos nós. Há uma África que se abriga em Marta, mais viva, mais cheia de luz, escudo das guerreiras tribais, força que nasce e renasce em cada xícara de café e esmaga a arrogância de Medeia, ameaçadora de todos os sonhos. Traz nos olhos os sustos apaziguados pela reza e pela fé. Mágoas colhidas na solidão das revoltas. Tem o brilho dos cafezais nas manhãs de inverno. Nas mãos todos os sabores, receitas de vida colhidas no tempo e nas lutas. Antítese em si mesma, paz e explosão, medo e coragem, amor e raiva. Antagonismo de sentimentos, tão díspares, peculiaridade de uma natureza em ebulição. Tem a pressa das codornas que habitam os milharais após as colheitas. A delicadeza das floradas dos cafezais. A persistência das abelhas fazedoras de mel. No sangue pulsa a instintiva defesa das crias e, como os quero-queros, afasta-se do ninho e insulta os predadores com piares ameaçadores. Que dores ainda habitam o céu de Nega? Que esperanças ainda gravitam pelos dias de Nega? Páginas de um livro escritas na imensidão do só, inspiradas na crença de que além das mágoas impressas nas fotografias espalhadas pelas paredes e trancadas nos álbuns de memórias, há uma outra história a ser contada. História aberta à alegria de conviver consigo mesma, sem o medo de revelar-se na grandeza de seus gestos e ideais, livre de todos e de tudo que lhe aniquilam o direito de ser livre e enxergar a vida, não pelos olhos do gavião faminto de presa indefesa, mas pelos olhos da andorinha em emigração. Planar outros céus, conhecer outros mares, caminhar por outros caminhos e, no sorriso que acolhe e recolhe, acolher outros risos e colher novos sonhos. Nega é assim, pimenta que tempera nossa vida e enche de aroma nossa história. Marta Terezinha conquistou, muito além das sombras dos cafezais, a liberdade de reconstruir o vôo da Fênix. É alecrim em festa de primavera, é parte do todo de nossa história. Volta, as andorinhas sempre voltam. Melhor, elas chegam em revoada, enchendo de vida o céu de todos nós.      

Série Cafezais 10


Kátia

A construtora de realidades, de mundos imaginários, de verdades inventadas no delírio adocicado do café. Vai ziguezagueante, como fumaça de cigarro forte, penetrando num mistério indecifrável de tudo que transcende. Gravita entre o que é terra e o que não é tato. Numa sinestesia que se constrói na rubricidade dos grãos de café amadurecidos, no zumbido de abelhas em caça de mel, no deslizar vagaroso de lagarta sonhando com os vôos das borboletas e, ao mesmo tempo, assustada com os piares festivos dos pássaros. Imperadora de sonhos que gravitam na órbita possessiva de suas vontades. Sofre as suas dores e as reparte na mesa compartilhada. E como se não fosse o bastante, inventa outras dores. Vai amando e odiando a sua maneira. Esmaga a flor e a serpente com a mesma ira. Seus abraços não são doados, são roubados. Tem amor estocado na alma, mas o café roubou-lhe a naturalidade dos gestos, a expansividade do sorriso, mutilou-lhe o prazer de se doar. Traz nos dedos e no rosto a rudez do trabalho árduo. Uma vontade incontrolável de ser como pai, de moldar às ordens às suas ordens. Amor e ódio que se movimentam, antítese de cada instante, uma luta de contrários em um mesmo círculo. Um impenetrável mundo de angústias explodidas nos gestos, nas falas, nos risos e nos sonhos planejados no combustível de vida. Não sei, não entendo, mas aprendi a gostar também daquilo que não sei. Amor nutrido nas veias, no fraterno sangue comum, na ira nossa de cada dia, nas nossas raivas e mágoas não reveladas. Foram nessas conversas mal afinadas que foram nascendo esses sentimentos inversos. Mas não se nutre a dor e é desta negação que vem este respeito e este carinho mútuo. Catarina tem a fraqueza das ovelhas natalinas, mas, em sua contradição, há a força dos alazões em disparada. Vem a Kátia, nesta sua maneira de sentir a vida, permeando a vida de outras pessoas. Não se julga o que não é liberdade. Ela volta, porque é ferro e só em brasa que marca boi.

MAReis

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Cafezais 9

Rubens

O mistério da terra. Fugaz como os cometas que cortam os céus campestres em noites desprovidas de luares. Concebido para o café, não vingou a determinação do destino. Rebelião a cada dia. Entendeu o mundo pelo avesso e desafiou a ordem de todas as coisas. Fez o croqui de uma liberdade sem ideologia que só nasce em sonhos projetados nos ventres dos cafezais, silenciosamente, enquanto mãos convulsas vão ceifando as ervas daninhas que insistem, dia após dia, em devorar cada árvore de café, progenitoras de tantas mágoas. Embriagou-se pelo perfume, não os das floradas primaveris, mas aquele perfume que inebria e acende o prazer da vida e perpetua a espécie. Encantador de palavras, de letras, de imagens de gibis. Traçou seu mapa de tempo e de vida.  Veio em uma manhã de natal, enchendo de festa outra festa. Aos quatorze fez-se paixão, aos dezesseis perpetuou sua imagem, beijou-a. Aos dezenove projetou outra imagem, não teve tempo para beijá-la. E numa manhã de uma semana santa, numa imitação muito aquém das coisas divinas, misteriosamente partiu, levando com ele uma vida inteira que podia ter tido e não teve. Deixou em mim a lembrança difusa de um tapa, de uma moringa quebrada, do desespero de uma mãe, de um choro convulso de pai.  Deixou também a primeira experiência de uma partida sem sentido, uma tristeza coletiva, uma verdade inacabada. Um projeto de liberdade sobre a estante em forma de fotografia em preto e branco. Rubens, meu irmão, volta para acabar de contar sua história. Uma história que se prolonga em nós e se dilui como gotas de chuva que vão se incorporando a terra e alimentando os cafezais.

MAReis

Cafezais 8


Ari
A força da terra. Nasceu e viveu café. Carregou nas palmas das mãos a imagem de todos nós, projeção iluminada de pai e do pai. No anagrama de seu nome encontrei o primeiro enigma do sentir-se além do café. Luta! Fez-se grande, experimentou de todos os sabores da alma e da terra. Simplificou o tempo no sorriso aberto, no soco alucinado, no choro largo, no abraço que não é apenas abraço, mas uma declaração de amor. Prendeu-se e se perdeu na bipolaridade de todas as coisas.  Amou tanto os outros que se esqueceu de amar a si próprio. Ari não nasceu para o agora, nasceu como terra, nasceu como o aroma que transcende dos cafezais, como os sabiás laranjeiras, como as chuvas de verão, nasceu para ser vida em abundância na essência do hoje e para o sempre da memória. Ari sonhou com um mundo perfeito, pensou que suas mãos fossem grandes o bastante, para embaixo delas, como asas de aves em luta pela descendência, agasalhar a todos nós. Cultivou uma espécie diferente de amor cuja tradução só se tem nas sombras dos cafezais e no sabor das refeições requentadas pelo calor do sol. Uma oração fervorosa, um horizonte de final de tarde no campo, uma orquestra de sons enigmáticos que saúdam uma nova madrugada. Ari foi algo tão forte no falar, no agir, no querer, no amar, no sonhar, mas tinha no coração a fragilidade dos cristais dos banquetes reais. Veio como as tempestades que marcam tudo e todos e de repente como se cansasse tudo, pediu licença, selou o famoso cavalo alado, e galopou para o infinito, deixando marcado no chão de todos os cafezais os seus passos, a sua voz e seu grito de independência. Ele volta para continuar esta história, porque a história dele faz parte da história de todos nós. Até já, Ari.   

MAReis   

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Série Cafezais 7

Dore

É terra de todos os frutos, é mato que abriga a caça, água que alimenta peixe e empurra o rio da vida.  Não se traduz a natureza. Incorpora-se a ela, vive-se ela nos olhos e no tato. Dore é dessas pessoas que de tanto viver a natureza se fundiu a ela. Traz na alma e na pele as cores dos sois que esverdearam a imensidão dos cafezais. Uma simplicidade no trato com a vida que só se encontra nos versos do mestre Alberto Caeiro.  É assim este meu irmão, não quis as letras e nem os números, mas dominou como ninguém a língua dos pássaros, das árvores, do rio e dos animais silvestre. Aprendeu a ler a noite e suas luas, as estrelas e seus caminhos desenhados na imensidão do céu. Do ventre da terra arranca a doçura do curau, da pamonha e do bolo de milho verde. O mel, rouba-o das abelhas e o saboreia no favo, as folhas verdes, colhem-nas no fundo do quintal, os frutos, só os colhidos nos galhos envergados pelo peso da vida. Tem nos pés a ligeireza das lebres em fuga. Defuma o mundo com o cigarro de palha, a mesma palha que reúne as varas de pesca dos finais de semana nos rios e lagoas lodosas que matam a sede e enche de leite as tetas inchadas das vacas leiteiras. Traduz a vida em palavras e frases curtas, num murmúrio de serpente em forma de riachos que cortam o campo e esta saudade. Há entre mim e Dore uma cumplicidade germinada na infância, nos pecados repartidos, nos segredos cujas raízes atravessam o tempo e o espaço. Juntos, aprendemos a fazer o nó que não se solta, a enganar os peixes, a acuar a caça, a escalar as árvores e as primeiras formas de amar.  Juntos, aprendemos a criar as primeiras histórias e as primeiras brigas. Juntos, tentamos adestrar a bola, mas o café é feito do gesto repetitivo, mecânico e sem sentido, prefere ás mãos aos pés, fomos nos integrando à terra e aplaudindo outros pés.  No tempo, Dore foi se fazendo mais café e, eu, me distanciando dos cafezais, mas não do Dore, pois não se afasta daquilo que é parte de você. Ele, não sei, mas eu sou muito dele. Somos, apesar do café, metade de uma mesma história. Ele volta? É Claro que sim! É parte de mim!  É o laço mais forte que me prende as memórias dos cafezais e de suas presas.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Série Cafezais 6

Maria José
(Zezé)

A liberdade se chama Maria José. O rio que corre para além dos cafezais se chama Maria José. Há em Maria José todos os risos e todos os choros. Sol e a Lua são plurais. Outros infinitos sóis e outras infinitas luas habitam a história de Maria José. Foi na densidade de seus sonhos que esbocei minha rebelião. Foi nas suas crenças que afiei as unhas do não que cravei na enorme garganta do talhão de café. Esse dragão insaciável que engole homens, mulheres, crianças e tudo que é sonho. Foram nas páginas de sua luta que rascunhei minhas crenças. Foi de suas manias que encontrei o antídoto para meus medos, introjetados e esculpidos na matéria prima do café disfarçado em forma de proteção de meus pais. Foi de suas iras e de seus gestos rebeldes, do colorido psicodélico de suas roupas, de sua mania de não crer em um Deus que aniquila, dessa sua certeza de que só não existe o que não queremos que exista, desse seu jeito sereno de enfrentar a dor, desse seu jeito oculto de chorar a sua dor, dessa sua coragem de se opor e de reconstruir-se cada instante no agito de natureza em gestação, dessas suas verdades tão ingênuas, que plantei meus sonhos que de tão semelhantes aos seus já não sei se são realmente meus. Há em tudo que é Maria José pouquinho de cada um de nós, uma história vertiginosa de vontades, de desejos e de certezas resumidas na sonoridade do seu nome de devoção, Zezé!

MAReis

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Cafezais 5

Haydêe

Veio da elegância de meu avô materno, adestrado na arte do bom gosto tão apregoada no começo do século XX. Disseram-me que se trata de um nome francês, se verdade ou não, não sei, apenas acreditei e isto me basta. Haydêe é minha mãe, minha e de mais onze irmãos, sem contar os agregados. Amo-a ao meu modo e ela me amou ao modo dela. 
Minha mãe cantava cantigas cheias de saudades, não sei bem do que nem de quem. Era capaz de transformar marchinha carnavalesca em ladainha. 

Até seus trezes anos de idade, contou-me ela, fora tratada a pão de ló, depois a bofetada. A segunda grande guerra e outras aventuras de meu avo levaram a família à bancarrota e fez de minha mãe babá. Levou o primeiro tapa no rosto  de uma criança que cuidava, doeu tanto que chorou quase que uma noite inteira, não de dor, mas porque percebeu que há uma diferença imensa entre o pajear e o ser pajeada. Deve ter se acostumado aos tapas e aos gritos. Não me poupou de boas surras e de bons tapas. Tinha um humor oscilante, ia do agradável ao desagradável em questões de minutos. Chamava Genézio por Genaro quase que rotineiramente e, se por acaso você não atendesse ao chamado, mesmo que ela houvesse trocado o vocativo, desfiava um rosário de considerações sobre o óscio.

Minha mãe trazia nos olhos e no semblante uma história de força, de garra e de luta própria de mulheres cujas vidas sentiram o peso de uma época e de uma sociedade em que uns nasciam para as salas de aulas e outros para as culturas de café. Nasci para o café. Tinha o estomago fraco. Rebelei-me. E esse rebelar significou não me deixar lapidar para a derriça, para a poda, para a capina, para o bronzeamento crônico da pele. Significou projetar-me para além dos quarteirões infindáveis dos cafezais. Não quis viver neles, deles, para eles.

É desta revolta que nasceu o amor que sinto por minha mãe. Um amor não umbilical e que transcende o físico. Um amor que nasceu na leitura de seu grito. Ela escrevia o mundo em cores vivas, muito além do verde, num idioma permeado de metáforas que só podia ser traduzido pela linguagem da alma. Era um pedido de socorro. Vai, filho, fuja, antes que se transforme em café! A minha mãe não nasceu café. Diferente de mim e de meus irmãos, ela sabia que existiam outros sangues além da cafeína. Era Espírita, o que lhe dera a certeza de que pertencera à realeza em uma vida passada, e esta certeza lhe fez rainha. Minha mãe guardou a doçura das jabuticabas saboreadas na jabuticabeira, o azedume dos cajamangas fora de época, a acidez do limão cravo e a beleza dos laranjais em flor. Foi mãe!  Tenho tanto para falar dela, voltarei a falar dela. O certo é que este livro está todo impregnado dela.
MAReis