quarta-feira, 13 de julho de 2011

Série Cafezais - última


Eu

Tudo o que me precede e tudo que me sucede. Sou a soma de todas as alegrias, de todas as revoltas, de todas  as tristezas com as quais convivi. Sou a soma de todos os sonhos que ouvi e vi por meio das bocas adormecidas de café. 
 Não bebi apenas o café açucarado que escorre dos peitos enegrecidos dos coadores, bebi também o chá das folhas, embriaguei-me da luz do querosene das lamparinas que, na fraqueza das chamas, jogaram um pouco de claridade nos olhos atentos de quem ousou  sonhar, numa cobiça que vai muito além do ali, que vai muito além dos queijos amontoados nos galpões de cura, muito além do que já se conhece do amanhã e do depois do amanhã. Foi na tintura do carvão da torra que tracei na palma da mão, minusculamente, o meu sentido de liberdade, para que o suor minado dos poros abertos pelo sol de cada dia não o apagasse. Sou acima de tudo o que colhi das convivências agasalhadas pelo tempo e pelo espaço dividido.  Fui somando o que de melhor colhi de cada um com quem dividi e somei, fui multiplicando a minha ira, a minha certeza de que o mundo não era apenas um imenso redondo enfeitado de café. E dos jornais amarelados, invólucros das cachaças baratas, amantes das desnudadas bocas dos capinadores e colhedores de café, que encontrei perdido o cinzel com o qual lapidei a madeira bruta e dela arranquei a canoa que me sustentou nas águas tormentosas de minha adolescência.  Agucei todos os sentidos contra a arrogância dos cafezais. Viajei por territórios tão diferentes, numa convivência amedrontada pela educação regida pela cartilha do café. Parti marcando meu caminho como cães domesticados. Não nasci para cultivar calos e colher raivas. As minhas dores, deixei-as lá, presas no fundo de minha infância como raízes de uma jaqueira centenária.  Fui me distanciando daquele eu anulado pela cafeína e, na inexistência da privacidade, reconstruí-me em outro eu particular, desnudado das mágoas colhidas nos troncos de cada pé café, de cada grão colhido. 















Desenvolvi um eu paralelo com quem reparti e reparto minhas angústias e minhas miragens futuras. Um eu que só se revela em mim mesmo. E pelos cafezais das minhas memórias ainda é possível ouvir os sons de um diálogo travado comigo mesmo. Diálogos ásperos, às vezes acovardados, às vezes lúcidos, às vezes delirantes, símbolo da loucura que me sustenta e me move para ir além. Este eu particular continua em mim e é com ele que reparto idéias e ideais, é com ele que reparto não só minhas vontades, mas os meus sonhos carentes de originalidade, desajeitados, despenados e curtos como os vôos de frangos destinados aos almoços dominicais. Estou encharcado de vida, colho pedaços de outras vidas fundidas em trânsito habituado. E aquele som das solidões plantadas na imensidão dos cafezais, faz-me companhia na rotina angustiante dos iguais de todas as manhãs, monotonia acadêmica de um quadro de natureza viva. Não sou estático, tenho um dinamismo oculto, perene, sedimentado na natureza de tudo que vi, ouvi, senti e provei. Continuo apenas sendo, tenho a desconfiança dos filhos dos cafezais e certo em mim, só o que ainda me falta viver. Pouco sei de mim, quem sabe? Os outros, talvez! Há um querer no fundo da alma que me assusta. Bomba programada para explodir? Relógio do tempo que ainda não vivi? A minha história tem a dimensão dos cafezais a serem plantados, até aqui é pouco e sei que isto não me basta!   

MAReis

Um comentário:

  1. Não podia deixar de comentar!!!. Muito dificil a auto "descrição" !!Parabéns! 1976 a 2011- Vc conseguiu expremir exatamente como te vejo.

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