quinta-feira, 16 de junho de 2011

Série Retratos de Infância

Prefiro as búricas.

Sempre as conheci como búricas, como se diz no interior, burcas, capriche no sotaque interiorano e o efeito soará mais real. Depois, muito depois, aprendi que elas se chamam bolinhas de gude. Confesso, prefiro búricas. Nada contra as bolinhas de gude, mas trata-se de uma questão de princípio, entende? Não quero perder as vozes dos meus amigos traduzidas na sonoridade da palavra burca. 
            O tempo, que era tão vagaroso àquela época, não se media pelo relógio, mas pelo o número de búricas que se perdia ou se ganhava. As regras, muitas vezes combinadas no calor da disputa, era algo religiosamente seguido. Tratava-se de coisa muito séria, pois, mais do que ganhar ou perder, era a chance de jogar o que estava posto. Qualquer distração significava além de perder uma ou duas búricas, o desprazer de ficar assistindo aos outros brincarem. Hoje, olhando daqui, parece tão pouco, tão nada, mas voltando lá, meu Deus, que agonia!
            As búricas, bolinhas de gude, como dizem os modernistas, pertenciam, vamos dizer assim ... a estafes diferentes. Havia as comuns, de cores verdes e azul  escuras, colocadas em disputa em qualquer triângulo ou birosca (pequeno buraco onde se deve acertar a tacada para dar início ao mata-mata). Se a compararmos a uma sociedade de formigas, podemos dizer que elas seriam os soldados, sempre na linha de frente. Havia as carambolas, recebem este nome porque trazem em seus interiores a figura de uma carambola, a fruta, magistralmente bela. Valiosíssimas, dificilmente participavam de uma pelada. Sua importância residia nas trocas. Valiam, de acordo com a tonalidade, cinco, dez e, mais raramente, vinte das comuns. Existiam também as pátrias, ou seja, as chamadas paulistinhas e cariocas. Não me recordo se havia outras com motivos estaduais, cearenses, gaúchas, e assim por diante. É possível que cada estado da União tivesse a sua representante. Aqui em São Paulo só as duas, pelo que me recordo. Interessante lembrar que as paulistas e cariocas sempre causaram muita polêmica quanto ao valor.  Uns defendiam a supremacia das paulistinhas por uma mera questão de bairrismo, pois ambas eram raras e tinham valores de trocas muito altos. Outros defendiam as cariocas com o fraco argumento de que se tratavam de raridades vindas de longe. Falácia, pois todas eram fabricadas nos mesmos lugares, eram irmãs de pai e mãe. Como esta polêmica nunca foi resolvida, pelo que me consta, a representatividade de cada uma delas dependia exclusivamente dos envolvidos na troca, ou seja, a vontade de possuí-la e a capacidade de negociá-la. Bom, tinha ainda o valioso buricão (burcão), muito importante na hora do mata-mata. Era sempre mais fácil acertar a peça do adversário com ele. Havia ainda outras representantes dos clãs das búricas com diferentes valores, tamanhos e funções, porém ficamos por aqui.
            Movidos por uma malandragem, já há muito bem conhecida, apareciam os espertos. Munidos com esferas de aço, retiradas de rolimãs quebradas, tentavam convencer os jogadores principiantes, e muitas vezes convenciam, do valor e da validade delas. Por serem de aço, evidentemente mais resistentes que os vidros, causavam um verdadeiro massacre, estilhaçando as pequenas esferas. Além de causar muito choro, muitas vezes eram responsáveis por algumas discussões, digamos assim, mais acaloradas.
            A verdade é que as búricas ou as bolinhas de gude, como queiram, sempre fascinaram e fascinam tanto nas formas como nas cores. Hoje, ainda sinto-me atraído por elas, não passo incólume quando as vejo, tenho sempre a tentação de levá-las contra a luz e, nos raios que delas desprendem, tentar desvendar os mistérios que nelas se escondem. Infância? Talvez!

MAReis
           


    

Um comentário:

  1. Mario, ler seu blogo me faz viajar numa agradavel viagem no tempo.......rsss, como sou da mesma região que vc, tbem conhecia as bolinhas de gude como "burca".....brincavamos no pateo da igreja de são sebastião, ou em algum terreno baldio proximo de casa.....eu tinha varias "burcas" que eu guardava em uma lata de leite ninho....gostava de começar o jogo com minhas piores bolinhas e não gostava de brincar qdo os meninos jogavam com bolinha de ferro, minhas burcas sempre saiam multiladas......rssss. Confesso que a alguns anos atras estava passeando pela 25 de março, qdo encontrei um saco de burcas....enlouqueci e comprei o todas.....qdo cheguei em casa fiquei horas olhando para as burcas carambolas, colocando as contra a luz para admirar seu brilho e a maravilha das carambolas coloridas, mas recentemente me desfiz das minhas amadas burcas, pois o meu caçula acha que tudo é comida e fiquei com medo dele engolir....mas assim que ele crescer um pouquinho mais comprarei novamente e tentarei brincar com ele. Tentei brincar com o Vinicius, meu filho mais velho, contei que brincava com elas, expliquei as regras e ele com muito desdem me disse um que legal bem mixuruca, peguei minhas bolinhas e gradei novamente na latinha.
    Tenho esperança que o João Pedro ou a Ana Luisa brinquem novamente comigo de burca.......rsss
    Um bj
    Joyce

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