quinta-feira, 16 de junho de 2011

"Repentinamente" 1

Uma lembrança me Acordou de Madrugada


Recusei de imediato a convocação descabida e fora de hora. Desabafei a Deus e creditei tal ousadia ao Diabo. Ainda que eu tenha uma relação de tranqüilidade com minhas lembranças e as considero sempre bem vindas, sejamos honestos, uma lembrança que chega de madrugada, no auge do sono merecido, após mais de doze horas de trabalhos ininterruptos, não pode ser uma boa lembrança. Não gostei desta visita inesperada. Odiei de início. Tampei os ouvidos numa tentativa idiota de não ouvi-la, como se elas, as lembranças, nascessem dos ruídos e das imagens exteriores. Ao contrário, elas nascem no interior de nós e, alienigenamente vai testando-nos a paciência até virarem náusea e, depois, num jato de vomito incontrolável inunda o papel de palavras. Usei as pontas do lençol para tampar os ouvidos, poderia tê-lo usado inteiro, mesmo assim, lá estava ela numa determinação odiosa de me fazer escravo, em sua busca obsessiva de se fazer real.   
- Macarrão!!!! Ele é um macarrão cozido!!!
O mundo riu de mim. Riram meus irmãos, meus cunhados, meus tios e tias, primos e primas, a família inteira. Os mais exaltados fizeram questão de repetir em coro, macarrão!! Apenas eu não achei um pingo de graça. Entreguei o serrote ao meu pai, acho que tinha ciscos nos olhos, homem não chora, não na frente de outros homens e muito menos depois de ser chamado de macarrão! Afinal já tinha oito anos de idade.  A ferramenta foi das minhas mãos até as mãos de meu pai manchado de mágoa e de uma quase revolta, numa lentidão assustadora.
-Vamos logo, macarrão!!!
Virei as costas para mundo e fui conversar com meus botões na curva de uma parede da casa grande, onde os risos e o vozario daquela festa não me alcançasse. Primeiro quis entender o porquê daquele vocativo tão despropositado. Macarrão?  Macarrão e por cima adjetivado! Macarrão cozido!! Não bastava apenas macarrão. Tinha que ser cozido. Puta que o pariu!!! 
Os santos sempre fizeram parte de minha família, herança da devoção católica de minha avó paterna. Os meses de junho e julho eram para ela uma época quase sagrada. Colhiam-se milho verde para a pamonha e para o curau. Batatas doces para assar nas brasas das fogueiras de Santo Antonio, São Pedro, São João ... acho que tinham outros santos por lá, não me lembro. Laranja brava, mamão verde, cidra e abóbora para fazer doces em calda. Tinha também garapa, vinho quente e quentão. Essa era uma época aterrorizante para animália da fazenda e, particularmente, para as mulheres e afins de corações mais sensíveis. As mesas e os giraus do barracão de trabalho tingiam-se de vermelho. Matavam-se frangos e galinhas velhas às dezenas, uma meia dúzia de leitões e, pior, um bom garrote de corte. No meio daquele sacrifício animalesco a serviço da comilança familiar, surgiam Histórias e histórias regadas a vinho quente, ordens e risos.
O macarrão deixou de ser apenas uma massa tão apreciada nos almoços de domingos e passou a ser História, parte do cardápio das festas de família. História que vinha para as rodas de conversa pela boca de um engraçadinho de plantão, geralmente um agregado na ânsia de agradar ao meu pai, e pai das esposas ou namoradas deles, parasitas! Cambada de filhos da puta que só apareciam nas épocas de festas. Acho que meu pai começava a enjoar daquela toada, a medir pelo tamanho riso por debaixo de seu bigode espesso e pela raiva que deixei de esconder.  
Mataram o garrote. Durante a desossa, faltou o maldito serrote para cortar um pedaço de costela mais resistente. Meu pai virou-se para mim.
- Vai até a dispensa e pegue o serrote. Corre!
Senti-me orgulhoso, fui notado, fui o escolhido.
A dispensa ficava pelo menos um cem metros dali. Era um quarto de paredes altas onde meu pai caprichosamente organizava suas ferramentas em prateleiras que, construídas em madeiras maciças, iam do chão ao teto. Cheguei lá rapidinho. Cacete! Cadê as chaves. Voltei correndo.
- Pai, cadê as chaves?
- Sai correndo que nem um bobo. É isso aí, a cabeça não pensa, o corpo paga. Vai rápido, um pé lá outro aqui! Jogou para mim as chaves, deixando transparecer  certa impaciência.
Reflita! Porra!! Quando for colocar duas ou mais fechaduras em uma porta, coloque-as todas a uma mesma altura, considerando sempre um homem de aproximadamente oito anos de idade ou então construa dispensas para anões! Caralho!  Meu pai não pensou nisso! Abri a primeira fechadura com facilidade. A segunda, depois de fazer um boa pilha de tijolos que me custou um unha roxa! Onde está você, serrote? Passei os olhos pelas prateleiras. Lá em cima, bem lá em cima, na última prateleira! Maldisse a organização de todos os adultos!! Num canto uma escada de madeira. Leve, levíssima como um tanque de guerra! O tempo passa mais depressa quando estamos atrasados! Meu Deus, como aquela escada era pesada!! Arrastei devagarinho, bem mais devagar do que eu imaginara e a pressa do meu pai que naquele momento já era a minha.  Peguei o serrote. Desci a escada com a velocidade de um camundongo em fuga. Fechei a porta com a velocidade de um gato em busca da presa. Sai correndo como um cão em festa junina, eu e o serrote. Meu irmão já vinha ao meu encontro.
-Daqui essa merda. Você acha que temos o seu tempo. Seu merda, eu quero descansar. E você ai que nem abelha fazendo cera! Disse-me ele com raiva.
-Não! O pai me mandou buscar. Eu levo. Eu não tenho namorada. Azar seu se você está com pressa.
-Vai se danar!
Corri, corri, cheguei lá, com a felicidade da missão cumprida, um sorriso vestido. Quando virei a curva da casa, havia algo errado no olhar do meu pai!
- Viva chegou a margarida!! A família gritou unida.
Meu pai.
- Isso aí é um macarrão!! É mais mole que um macarrão cozido!!
Porra! Eu devia ter dado o serrote para meu irmão entregá-lo ao meu pai!!
Meu pai sempre dizia que domingo sem macarrão e sem frango não é domingo. Eu também acho.

  MAReis

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