quinta-feira, 16 de junho de 2011

Série Retratos de Infância 2

Cinco-Marias e Bolinhos de Chuva

Somos o que se vive. Filosofia! Não minha, deixemos claro. Palavras da minha “proverbiana” avó. Tomo-as emprestadas, porque me veio à mente, resgatada do baú de memórias, a tradicional brincadeira das “cinco-marias”.
Minha avó com uma pequena cesta de vime no colo, cheia de retalhos coloridos, costurando caprichosamente pequenos saquinhos e os enchendo com arroz cru. Em volta dela, netos e netas e uma algazarra de vozes que incomodavam terrivelmente meus pais, principalmente em dias de trovoadas, regados a bolinhos de chuva. Reconhecemos que as preocupações deles gravitavam em outras órbitas. A nós, o que importava “as dores do mundo”? Não raras vezes surgia a antítese entre o que meus pais consideravam bagunça e que minha avó, ao contrário, dizia ser o harmonioso direito à alegria, o mais poderoso antitérmico contra a febre da apatia. Deixem as crianças serem crianças!  E dessas antíteses nasciam os mais elaborados provérbios em nossa defesa. Não tenho certeza se eles eram uma construção sincronizada e de autoria dela ou se recorria às centenas de livros que lera. Feito este preâmbulo, necessário, pois esta brincadeira na minha infância passa obrigatoriamente pelas mãos hábeis de minha avó, chego as cinco-marias.
Começo pela dúvida. Porque cinco-marias se tratam de cinco saquinhos? Não seria razoável chamá-los dos cinco-mários? Não há aí um paradoxo de gênero? Controvérsias à parte, o fato é que para mim, àquela época, foi. Hoje, nesta altura do espaço e do tempo, já não a tenho, o nome segue a etimologia da brincadeira. Ela nasceu pedrinhas e, com a evolução natural das coisas, se tornou saquinhos devidamente preenchidos com arroz cru.  Cavalheirismo posto à prova, o feminino prevaleceu. Sei também que se trata de uma brincadeira polinômia, recebe nomes diferentes de acordo com as regiões em que se brinca: jogo das pedrinhas, nente, belisca, capitão, liso, xibiu e epotatá, jogo do osso, onente, bato, arriós, telhos, chocos e nécara e por aí vai.  Não me arrisco a explicar o porquê, mas que diferença isso faz? Diferentes regras, fora o bairrismo, todas muito divertidas.
Com sua licença, recuo no tempo de minhas memórias. Quero o presente. Há em mim um pouco de infância, tenho o direito de exercê-la. Minha avó novamente: “não basta ser criança é preciso sentir-se e pensar como criança”.
No chão, num canto, sobre a mesa ou num plano qualquer, reunido um grupo de crianças para jogar cinco-marias. As regras decoradas. Os saquinhos lançados ao chão inicia-se o jogo da destreza.  Movimentos sincronizados entre o saquinho que sobe e os que são recolhidos: de um em um, de dois em dois, de três e um, e de quatro. Todos recolhidos. Outros movimentos, agora, nas costas das mãos, depois entre os dedos. Sempre um saquinho lançado ao ar e aparado com agilidade. O jogador é acompanhado atentamente pelos seus adversários. Cai! Tomara que caia! Caí! Não Caí! Caiu! Outro participante assume o leme.
Não se passa pela infância incólume as suas marcas. Elas são fortes, são imagens desenhadas nas palmas das mãos, impressas nas retinas, gravadas pelos sons que impregnam os ouvidos, pelo sabor do açúcar que enfeitam as festas de crianças e pelo cheiro de terra molhada que nos convida a correr pela chuva. Como as cinco-marias, ser criança é explorar com intensidade a vida, é mergulhar e descobrir o prazer dos cinco sentidos. A criança não mede o tamanho de sua alegria pelo que tem, mas pelo que brinca. Dê a ela um dia de brincadeiras e ela lhe dirá: hoje o dia foi muito legal!  Poxa! Eu realmente “quero a paz de uma criança sorrindo”.
Quando a vontade de jogar as cinco-marias pegar-lhe desprevenido e lhe faltar os saquinhos de arroz, como aqueles que minha avó tão bem cosia, não desista. Recorra à tradição, recolha pedrinhas pelo chão e coloque a prova todos os seus sentidos.
“Sol e chuva, casamento de viúva. Chuva e sol, casamento de espanhol”.  Cinco - marias e bolinhos de chuva!

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