sexta-feira, 17 de junho de 2011

Série Cafezais


Cafezais
Em torno das xícaras de café contam-se histórias, nos cafezais colhem-se histórias. Histórias sentidas, ingênuas que nascem da essência das floradas, dolorosas como as ferroadas das vespas, odiosas como as ardências febris das taturanas camufladas, alucinantes como zumbido de mangava prenha. São histórias de homens e mulheres secos de sonhos numa imitação autêntica das palhas quebradiças que forram o chão das colheitas outonais. Uma metamorfose de quem nasce flor para depois se tornar pó. Um nada imenso e tão pobre que nem a ausência se vive. Uma geração que nasceu para terra, para o labor da terra, para servir a terra. É daí que nasce este meu gosto incontrolável pelo café. Não sou viciado em café, ao contrário, é o café que é viciado de mim.

MAReis






Minha Ama de Leite
        
Nasci como todos os meninos das grandes fazendas do interior de São Paulo destinadas ao plantio do café. Modelado e carimbado para lida. Já nasci sentindo o cheiro da cafeína. Não aquele que se exala pelos bares e restaurantes da vida, mas aquele cheiro que nasce dos terreiros de secagem, das sacas empilhadas, das peneiras, dos vassorões que empurram areias sedimentadas. Já nasci ouvindo as vozes e gritos em idioma próprio dos peões e seus embornais. Nas tetas sempre cheias de minha ama de leite, experimentei pela primeira vez o café com leite.
Longe do burburinho urbano, quase uma dezena de quilômetros de distância de um médico qualquer, numa casa caiada, cuja brancura se destacava na floresta verde escura dos cafezais, vim ao mundo amparado pelas mãos de Dona Maria, parteira negra de voz melodiosa, digna das cantoras americanas de “Blue”. Dona Maria possuía uma beleza rústica, trazia sempre pendurado na boca um cachimbo de barro que, quando aceso, lançava ao ar um forte e adocicado cheiro de fumo de corda. Tinha uma paixão secreta por esta senhora. Dela exalava uma paz, uma calma que só os anos de vida e de luta emprestam. Ganhei horas a fio ouvindo, entre uma cachimbada e outra ou enquanto desfiava nas palmas das mãos o fumo para abastecer o instrumento fumegante, suas histórias místicas, muito delas folclóricas, outras ligadas à riqueza do sincretismo religioso, que de tão belamente contadas por ela, nas minhas crenças e no meu espírito se fizeram reais a vida inteira. Invejo estas mulheres, invejo seus genes impregnados de África. Invejo esta cultura clandestina que se revela nas panelas de barro e nos fogões à lenha, que explodem em sons, em ritmos, em danças, em rezas, em poesia, em vertigem!  Dona Maria não foi apenas a mulher que me trouxe ao mundo, foi minha primeira imagem de mundo! Trazia no rosto a serenidade das rainhas angolanas, na orelha um galhinho de arruda e uma argola dourada, na cabeça um lenço com as cores de todas áfricas, me sustentou nas mãos calejadas das colheitas de café, contagiou-me de África.  É essa África que me prendeu aos cafezais, é essa mesma África que me levou além desses cafezais. Obrigado Dona Maria.

MAReis


Um comentário:

  1. A introdução da série cafezais me fez lembrar de "Vidas secas". Lembra quando vc. me emprestou??? Minha filha está lendo e está gostando e eu adorei!!! Quero reler.
    bjs

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